domingo, 19 de dezembro de 2010

'Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada - eu sempre perdia todos pelos bares - (...) e fumaríamos, eberíamos sem medidas. Haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim. (...) Não queria que ele pensasse que eu andava bebendo - e eu andava - (...) e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, (...) e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. (...) E mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois há um ponto, eu descobri, em que você perde o comando das próprias pernas. (...) Então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo: ''mas como você está molhada'', sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, quem me via assim molhado não via nosso segredo, (...) porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta.
(...) Eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça, para formar quem sabe um castelo, um bosque, um verme ou um deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar (...) eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo. Eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.'

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